Empresas estão com suas atividades prejudicadas por conta das medidas de prevenção à pandemia de Coronavírus. Desse modo, as empresas estão impedidas de arcar com o pagamento de tributos federais, eis que não possuem recursos para tanto, em evidente situação de dificuldade financeira, conforme pode ser facilmente vislumbrado nos seus balancetes e balanços. Deve-se aplicar, aqui, o princípio da inexigibilidade de conduta diversa, conforme autoriza o Código Tributário Nacional em seu art. 108, III.
Frente à paralisação das atividades empresariais, há que se considerar a jurisprudência pátria, a qual admite, de longa dada, uma vez comprovada a dificuldade financeira da empresa, o direito de não recolher ou recolher a menor o tributo, não podendo haver penalidades, em razão da inexigibilidade de conduta diversa. Neste sentido, vejam-se as seguintes decisões do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, aplicáveis, por analogia:
“O contribuinte só se exime do recolhimento das contribuições de lei em prejuízo da receita pública, caracterizando a excludente de inexigibilidade de conduta diversa, em casos excepcionalíssimos, quando a prova documental é incontestável e amplamente demonstrativa das dificuldades financeiras da empresa” (ACR n. 96.04.17777-0/PR, Rel. Juiz Gilson Dipp, DJ de 07.05.1997, p. 31).
“Penal. Omissão de Recolhimento de Contribuições Previdenciárias. Inexigibilidade de Conduta Diversa. Dificuldades Financeiras Comprovadas. Intervenção do Estado na Economia e Violação aos Princípios da Livre Iniciativa e do Regime Capitalista. Inocorrência. Não há como deixar de reconhecer a excludente de culpabilidade consistente na inexigibilidade de conduta diversa, tendo em vista que restaram comprovadas, no feito, as dificuldades financeiras enfrentadas pela empresa na época em que o acusado era responsável pelo recolhimento das contribuições previdenciárias, tendo o réu demonstrado, portanto, sua conduta exculpável” (ACR n. 2002.04.01.049680-1/SC, Rel. Des. Fed. Fábio Rosa).
Ressalte-se, nesse ínterim, que a prova da dificuldade financeira não exige demonstrar a absoluta impossibilidade do pagamento do tributo, mas pede a demonstração da necessidade de fazer escolhas para a continuidade do empreendimento. Desta feita, comprovada a inexistência de dinheiro para recolher aos cofres do Fisco, caracterizada estará a hipótese de inexigibilidade de conduta diversa, não devendo, assim, a empresa ser penalizada por tal fato.
Ademais, há que se considerar que a aplicação de multa ao contribuinte, ou seja, a aplicação de sanção tributária pelo Fisco tem por finalidade prevenir a ocorrência de dano ao Erário, funcionando como técnica de arrecadação. Isso porque tais sanções objetivam a realização do interesse público, consistente na arrecadação das receitas indispensáveis ao custeio dos serviços e investimentos públicos.
Ocorre que, a aplicação de sanção, ou seja, de multa, deve observar o princípio da proporcionalidade, tanto no que tange a compatibilidade entre o objetivo visado com a regra tributária violada e o nível de sanção previsto para essa inobservância, mas, principalmente, a extensão da limitação sofrida pelo indivíduo que deve suportar a sanção.
Em assim sendo, o princípio da proporcionalidade, em sentido estrito, determina que se verifique os efeitos concretos que a imposição da sanção gera sobre a esfera jurídica do infrator. Nesse sentido, deve-se analisar todo o contexto fático e jurídico em que se deu a prática da infração.
Por essa razão é que se afasta a punibilidade em crimes tributários em razão do não recolhimento de contribuições previdenciárias, quando demonstrada a ocorrência de sérias dificuldades financeiras do sujeito passivo tributário, configurando inexigibilidade de conduta diversa. Da mesma forma, inexigível, assim, por conta da pandemia do Coronavírus, o pagamento de multa por parte do contribuinte, eis que o não pagamento do tributo se deu, exclusivamente, por situações alheias a sua vontade.
Admitir o contrário seria ir contra aos postulados constitucionais da livre iniciativa e do trabalho, sem falar na função social da empresa, pois a exigência do pagamento de tributos, com a aplicação de multas, acabaria por inviabilizar a continuidade da empresa, realizando verdadeiro confisco, o que também é vedado pela Constituição Federal.
Na situação atual, resta evidente a situação de dificuldade financeira enfrentada pelas empresas, em consequência da pandemia do Coronavírus, não sendo aplicável, portanto, qualquer penalidade pelo não recolhimento de tributos, eis que a empresa não podia agir de outra forma, sob pena de configurar inconstitucional confisco.
Esse é o entendimento exarado pelo STF (Supremo Tribunal Federal), proferido em sede do julgamento de medida cautelar em Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1075, nesses termos:
“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE – LEI Nº 8.846/94 EDITADA PELA UNIÃO FEDERAL – ALEGAÇÃO DE OFENSA AOS POSTULADOS CONSTITUCIONAIS DA FEDERAÇÃO E DA SEPARAÇÃO DE PODERES – INOCORRÊNCIA – EXERCÍCIO, PELA UNIÃO FEDERAL, DE SUA COMPETÊNCIA IMPOSITIVA, COM ESTRITA OBSERVÂNCIA DOS LIMITES QUE DEFINEM ESSA ATRIBUIÇÃO NORMATIVA – DIPLOMA LEGISLATIVO QUE NÃO USURPA A ESFERA DE COMPETÊNCIA TRIBUTÁRIA DOS ESTADOS-MEMBROS E DOS MUNICÍPIOS – LEGITIMIDADE DO PODER REGULAMENTAR DEFERIDO AOS MINISTROS DE ESTADO -ATRIBUIÇÃO REGULAMENTAR DE SEGUNDO GRAU QUE POSSUI EXTRAÇÃO CONSTITUCIONAL (CF, ART. 87, PARÁGRAFO ÚNICO, II)- INOCORRÊNCIA DE OUTORGA, PELA LEI Nº 8.846/94, DE DELEGAÇÃO LEGISLATIVA AO MINISTRO DA FAZENDA – PODER REGULAMENTAR SECUNDÁRIO DESVESTIDO DE CONTEÚDO NORMATIVO PRIMÁRIO – TRANSGRESSÃO, NO ENTANTO, PELA LEI Nº 8.846/94 (ART. 3º E SEU PARÁGRAFO ÚNICO), AO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA NÃO–CONFISCATORIEDADE TRIBUTÁRIA – SUSPENSÃO CAUTELAR DA EFICÁCIA DE TAL PRECEITO LEGAL – MEDIDA CAUTELAR DEFERIDA, EM PARTE. A TRIBUTAÇÃO CONFISCATÓRIA É VEDADA PELA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA.
– É cabível, em sede de controle normativo abstrato, a possibilidade de o Supremo Tribunal Federal examinar se determinado tributo ofende, ou não, o princípio constitucional da não-confiscatoriedade consagrado no art. 150, IV, da Constituição da República. Hipótese que versa o exame de diploma legislativo (Lei 8.846/94, art. 3º e seu parágrafo único) que instituiu multa fiscal de 300% (trezentos por cento).
– A proibição constitucional do confisco em matéria tributária – ainda que se trate de multa fiscal resultante do inadimplemento, pelo contribuinte, de suas obrigações tributárias – nada mais representa senão a interdição, pela Carta Política, de qualquer pretensão governamental que possa conduzir, no campo da fiscalidade, à injusta apropriação estatal, no todo ou em parte, do patrimônio ou dos rendimentos dos contribuintes, comprometendo-lhes, pela insuportabilidade da carga tributária, o exercício do direito a uma existência digna, ou a prática de atividade profissional lícita ou, ainda, a regular satisfação de suas necessidades vitais básicas.
– O Poder Público, especialmente em sede de tributação (mesmo tratando-se da definição do “quantum” pertinente ao valor das multas fiscais), não pode agir imoderadamente, pois a atividade governamental acha-se essencialmente condicionada pelo princípio da razoabilidade que se qualifica como verdadeiro parâmetro de aferição da constitucionalidade material dos atos estatais.”
(…) (STF. ADI-MC 1075. Relator Ministro Celso de Mello. DJ 24/11/2006)
Pela leitura da decisão citada, pode-se perceber que também a multa não pode realizar confisco, prática expressamente vedada pela Constituição Federal, conforme entendimento pacífico do STF.
Isso porque o quantum referente à multa também deve ser fixado considerando-se o princípio da razoabilidade, de modo que o valor exigido não venha a configurar injusta expropriação de bens do contribuinte por parte do Estado, o que acabaria por inviabilizar o regular exercício de suas atividades empresarias.
Nesse sentido, mister ressaltar trecho do voto proferido pelo Relator Ministro Celso de Mello na citada ADI, nesses termos:
“(…) É inquestionável, Senhores Ministros, considerando-se a realidade normativa emergente do ordenamento constitucional brasileiro, que nenhum tributo – e, por extensão, nenhuma penalidade pecuniária oriunda do descumprimento de obrigações tributárias principais ou acessórias – poderá revestir-se de efeito confiscatório.
Mais do que simples proposição doutrinária, essa asserção encontra fundamento em nosso sistema de direito constitucional positivo, que consagra, de modo explícito, a absoluta interdição de quaisquer práticas estatais de caráter confiscatório, com ressalva de situações especiais taxativamente definidas no próprio texto da Carta Política (art.243 e seu parágrafo único).
Essa vedação-que traduz conseqüência necessária da tutela jurídico-constitucional que ampara o direito de propriedade (CF, art.5º, incisos XXII, XXIV e XXV; art.182, §2º e art.184, “caput”) – estende-se, de maneira bastante significativa, ao domínio da atividade tributária do Estado.
Os entes estatais, investidos pela Constituição de competência impositiva, não podem utilizar essa extraordinária prerrogativa político-jurídica de que dispõem em matéria tributária, para, com fundamento nela, exigirem prestações pecuniárias de valor excessivo que comprometam, ou, até mesmo, aniquilem o patrimônio do contribuinte.
O ordenamento normativo vigente no Brasil, ao definir o estatuto dos contribuintes, proclamou, em favor dos sujeitos passivos que sofrem a ação fiscal do Estado, uma importante garantia fundamental que impõe, em sede constitucional, aos entes públicos dotados de competência impositiva, expressiva limitação ao seu poder de tributar.
Trata-se de vedação, que, tendo por destinatários a União Federal, os Estados-membros, o Distrito Federal e os Municípios, proíbe-lhes a utilização do tributo “com efeito de confisco” (CF, art.150, IV).
Revela-se inquestionável, dessa maneira, que o “quantum” excessivo dos tributos ou das multas tributárias, desde que irrazoavelmente fixado em valor que comprometa o patrimônio ou ultrapasse o limite da capacidade contributiva da pessoa, incide limitação constitucional, hoje expressamente inscrita no art. 150, IV, da Carta Política, que veda a utilização de prestações tributárias com efeito confiscatório. (…)”
Diante das medidas restritivas à atividade empresarial, por conta da pandemia do Coronavirus, resta evidente o caráter confiscatório de multa imposta por atraso do recolhimento de tributos, razão pela qual se faz imperiosa a exclusão de qualquer penalidade pecuniária durante este período de restrição.
Como parâmetro para demonstrar o excesso de penalidade aplicado pelo fisco, cabe considerar a alteração sofrida no Código de Defesa do Consumidor. No início, o CDC autorizava, em seu art. 52, § 1º, a aplicação de multas de mora decorrentes do inadimplemento de obrigações no seu termo de até 10% (dez por cento) do valor da prestação. Percebendo o exagero de tal pena, o legislador ordinário, através da Lei nº 9.298/96, reduziu tal pena para 2% (dois por cento). Ora, na comparação com este exemplo, resta insofismável o caráter confiscatório da multa aplicada nos lançamentos tributários, que no âmbito federal podem ser 20% ou 75%, devendo ser reduzida a patamares aceitáveis e até excluída frente às consequências da pandemia do Coronavírus.
RICARDO VOLLBRECHT
OAB/RS 39.143 – OAB/SP 163.830