Recentemente veio a público a Nota Técnica do Ministério Público Federal alertando Gestores Públicos que eventual flexibilização das medidas de distanciamento social em meio à pandemia do coronavírus, sem respaldo técnico, poderá implicar em responsabilização por improbidade administrativa, inclusive com perda da função pública, suspensão dos direitos políticos e pagamento de multa.
O documento serve de orientação aos Procuradores da República, e tem por objetivo assegurar que o sistema de saúde pública consiga atender ao pico da demanda no tratamento da doença, conforme critérios definidos pelo Ministério da Saúde, só podendo ser flexibilizada caso haja “respiradores suficientes, EPIs para os trabalhadores da área da saúde (como gorro, óculos, máscara, luvas e álcool gel), recursos humanos para o manejo de cuidados básicos e avançados de pacientes da covid-19, leitos de UTI e de internação, bem como testes laboratoriais para o diagnóstico dos pacientes”.
A partir dessa orientação, cabe breve análise da Legislação.
Na Administração Pública:
A Constituição Federal dispõe que a Administração Pública, direta ou indireta, de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.
A partir da determinação Constitucional, a Lei Federal nº 8.429/1992 estabeleceu as punições aos agentes públicos que deixarem de observar os princípios da Administração Pública e vierem a enriquecer ilicitamente no exercício de mandato, cargo, emprego ou função na administração pública direta ou indireta.
A improbidade administrativa é a conduta praticada por agente público que contraria as normas morais, a lei e os costumes. Improbidade significa ausência de probidade, de integridade, honestidade, retidão. Então, improbo é o agente público que age em desacordo com a honestidade esperada por um servidor público, impondo prejuízos sociais ou financeiros.
Os gestores sujeitos a eventuais penalidades pode ser qualquer pessoa que no exercício de mandato, cargo, emprego ou função na administração pública direta ou indireta. Aqui nos ocuparemos dos Chefes dos Poderes, em especial os do Poder Executivo.
Antes de retomar a eventual responsabilização por Improbidade Administrativa, importante retomar quais fatos jurídicos vinculados à pandemia ensejariam a responsabilidade.
A Lei Federal nº 13.979, de 06/02/2020, estabeleceu normas de isolamento e quarentena, entre outras medidas. A partir desta Lei, foi publicado o Decreto nº 10.282, de 20/03/2020, que elencou uma série de atividades e serviços considerados essenciais, ficando os demais, a princípio, vedados.
Com fundamento nas legislações federais, Estados e Municípios passaram a regulamentar, localmente, as atividades e serviços essenciais, inclusive, por vezes, de forma mais restritiva que as normativas federais, pois autorizados a assim agir por essas.
A referida Lei Federal dispõe, expressamente, que as medidas objetivam a proteção da coletividade, e que ato do Ministro da Saúde disporá sobre a duração da situação de emergência de saúde pública, cujo prazo não poderá ser superior ao declarado pela Organização Mundial de Saúde.
Sabidamente, há muita divergência entre governos municipais e estaduais, e destes com o Governo Federal. Aliás, sabe-se que há divergência dentro do próprio Governo Federal. A par das disputas políticas e ideológicas, toda Lei tem uma motivação. No caso em análise, está claro que a motivação é a proteção da coletividade. E o Congresso Nacional, certo ou errado, impôs ao Ministro da Saúde a decisão acerca da duração da situação de emergência de saúde pública.
Assim, se a competência LEGAL para decidir acerca da duração da situação de emergência de saúde público é do Ministro da Saúde, a única forma de desprezar sua decisão é com a exoneração, com nomeação de pessoa mais “alinhada” com o pensamento do Chefe do Executivo Federal.
Partindo desta premissa, ao Ministro compete traçar as linhas gerais de combate à pandemia, devendo os Governadores e seus Secretários seguirem os parâmetros da Legislação Federal e as orientações do Ministério da Saúde, e os Prefeitos e seus Secretários seguirem a Legislação Federal, Estadual e as orientações do Ministério da Saúde e dos Governos Estaduais.
O descumprimento da Legislação e das orientações dos órgãos técnicos implica, em tese, em ATO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA, pois estariam os Gestores Públicos descumprindo, dentre outros, conforme lições de Alexandre Mazza, em seu Manual de Direito Administrativo, os princípios:
* da Supremacia do interesse público, que determina que o interesse da coletividade é mais importante que os interesses individuais;
* da Indisponibilidade do interesse público, que estabelece que os agentes públicos não são donos do interesse defendido por eles, de modo que não podem agir segundo a sua própria vontade, mas do modo determinado na Lei;
* da Legalidade, que determina que os agentes públicos somente podem praticar os atos autorizados pela Lei;
* da Impessoalidade, que estabelece o dever de imparcialidade na defesa do interesse público, impedindo discriminações e privilégios;
* da Segurança Jurídica, voltado à garantia de estabilidade social e previsibilidade das ações estatais, visando afastar sobressaltos e surpresas nas ações governamentais.
Evidente que as determinações de isolamento, com o açodamento que foram realizadas, importou em desestabilização social e imprevisibilidade das ações estatais. Entretanto, tal açodamento, repita-se, certo ou errado, se justifica, ante a urgência de proteção da coletividade, portanto, alinhadas com a motivação da Lei aprovada pelo Congresso Nacional.
A observância a tais princípios não significa que não existam outros interesses legítimos, mas compete ao Gestor Público buscar o equilíbrio, fazendo prevalecer aqueles que interessam à maioria da população, sob pena de responder pelo ressarcimento integral do dano, se houver, perda da função pública, suspensão dos direitos políticos de três a cinco anos, pagamento de multa civil de até cem vezes o valor da remuneração percebida pelo agente, sem prejuízo das responsabilidades penais, civis e administrativas.
Na iniciativa privada:
De igual sorte o Gestor de empresa privada, embora com fundamento em legislação diversa, pode ser responsabilizado.
Isso porque, a Constituição Federal dispõe que são fundamentos da República Federativa do Brasil, entre outros, a dignidade da pessoa humana, e consagra entre os direitos e garantias fundamentais do cidadão o direito à vida, assegurando o direito à indenização por danos materiais e morais.
Nesse sentido, o Código Civil dispõe que aquele que, por ato ilícito, ou seja, por a ação ou omissão voluntária (espontânea), negligente (falta de cuidado ou desleixo) ou imprudente (ação não pensada, feita sem precauções) violar direito e causar dano a outro, ou aquele que exceda os limites impostos pelo fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes, no exercício de um direito, fica obrigado a reparar os danos materiais e morais decorrentes dessas circunstâncias. Por exemplo:
1) o empresário que, para desenvolver sua atividade econômica, expõe a risco a saúde e a vida de seus colaboradores, descumprindo total, ao deixar de observar a quarentena ou isolamento social, ou parcialmente a Lei, ao fazer com que trabalhem sem observar as regras sanitárias e de distanciamento mínimo, como as constantes do Decreto Estadual do RS, quais sejam: distanciamento social, com restrição de circulação, visitas e reuniões presenciais (aglomerações) de qualquer tipo ao estritamente necessário, cuidados pessoais, sobretudo da lavagem das mãos, antes e após a realização de quaisquer tarefas, com a utilização de produtos assépticos, como sabão ou álcool em gel setenta por cento, bem como da higienização, com produtos adequados, dos instrumentos domésticos e de trabalho, etiqueta respiratória, cobrindo a boca com o antebraço ou lenço descartável ao tossir ou espirrar, adoção de sistemas de escalas, de revezamento de turnos e de alterações de jornadas, para reduzir fluxos, contatos e aglomerações de seus funcionários, e afastamento destes quando houver suspeita de possível contaminação pelo coronavírus, quando do regresso de localidades em que haja transmissão comunitária ou quando apresentem sintomas da doença como febre, tosse, dificuldade para respirar, produção de escarro, congestão nasal ou conjuntival, dificuldade para deglutir, dor de garganta, coriza, saturação de O2 < 95%, sinais de cianose, debatimento de asa de nariz, tiragem intercostal e dispneia;
2) o mesmo empresário pode estar impondo riscos à saúde e à vida de seus clientes, se deixar de observar a quarentena ou isolamento social, caso sua atividade não seja considerada essencial, portanto impedida de funcionar, ou deixar de observar as regras sanitárias e de distanciamento mínimo antes citadas, com acréscimo de, muitas vezes, estar caracterizada relação de consumo que, via de regra, coloca o consumidor em desvantagem econômica frente ao fornecedor, vez que o Código de Defesa do Consumidor considera este vulnerável na relação de consumo, o que complica, ainda mais, a relação processual, na medida que impõe a inversão do ônus da prova, ou seja, que o fornecedor prove que as alegações de fato do consumidor não condizem com a realidade narrada, o que, por vezes, dificulta muito o afastamento de eventual responsabilização, pois torna a contraprova impossível.
No caso de responsabilidade de gestores privados, a responsabilidade civil pode ser objeto de ação individual, ajuizada pelo próprio interessado ou por seus familiares, em caso de óbito, ou coletiva, ajuizada por associação, pelo Ministério Público ou pela Defensoria Pública, sem prejuízo de eventuais responsabilizações penais e administrativas, como por exemplo as decorrentes das relações trabalhistas, no caso dos colaboradores, com penalidades impostas pelo Ministério do Trabalho, e as de relações de consumo, no caso dos consumidores, com penalidades aplicadas pelo PROCON.
Importante referir que não se desconhece as extremas dificuldades econômicas enfrentadas por algumas atividades econômicas, muitas delas impedidas de abrir fisicamente seus negócios. Todavia, os alertas aqui feitos são importantes, a fim de evitar que, além das naturais dificuldades impostas pela crise econômica, também, sejam os gestores responsabilizados em várias esferas, como a administrativa, a civil e a penal, para os da iniciativa privada e, além destas, a improbidade administrativa, para os gestores públicos, o que certamente não será pessoal, profissional e financeiramente agradável aos mesmos. Assim, concordando ou não com os Decretos de quarentena e isolamento, essas circunstâncias precisam ser avaliadas pelos Gestores, antes da tomada de decisões com base na emoção e nas pressões sociais e econômicas.
Dr. Ricardo Luís Schultz Adede y Castro – OAB/RS 58.941